A verdadeira origem do célebre Rei Amador, líder da revolta dos escravos em 1595*
por Gerhard Seibert
Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT), Lisboa
Este ano o dia 4 de Janeiro tornou-se feriado nacional em homenagem ao Rei Amador, líder da revolta de escravos em 1595. Segundo a mitologia pós-colonial em São Tomé e Príncipe, o Rei Amador, representado nas notas bancárias do país(1), era rei dos angolares. A todos os visitantes do arquipélago, interessados na sua história, conta-se esta lenda, que foi divulgada desde a independência. No pequeno texto ‘Esboço Histórico das Ilhas de S.Tomé e Príncipe’, publicado em 1975 e atribuído ao historiador Carlos Neves lemos que “A 9 de Julho de 1595 o célebre Amador à frente dos Angolares, levanta o estandarte da revolta, mas é preso e morto em 1596.” (2) Esta versão também se encontra em obras literárias da temática santomense. Por exemplo, na sua peça ‘Teatro do Imaginário Angolar’ o escritor português com ascendência santomense-angolar Fernando de Macedo Ferreira da Costa, explica que Amador é o “célebre guerreiro que, comandando as hostes Angolares (reforçadas de outros negros revoltados), ousou avançar sobre a capital de S.Tomé”. (3) Não admira que esta versão também tenha sido divulgada por guias turísticos e documentários sobre STP. Contudo, será que os documentos históricos confirmam a afirmação que Amador era Angolar?
Os únicos documentos contemporâneos existentes da revolta encontram-se na Monumenta Missionária Africana, publicada pelo Padre António Brásio. O primeiro documento, em italiano, intitulado ‘Relatione uenuta dall’ Isola di S.Tomé’, cujo original está nos arquivos do Vaticano, diz sobre os acontecimentos de Julho de 1595 que os escravos se colocaram na “obedienza di quel primo Negro che si solleuó, chiamato per nome Amadore, il quale era schiauo di un Gentil ‘huomo chiamato Don Ferdinando, et in questo mentre alzorono detto Negro per Re, giurando di obedirgli fino alla morte...”. Assim, de acordo com este documento, Amador era escravo de um Dom Fernando. (4) O segundo documento, um breve texto arquivado na Biblioteca Nacional em Lisboa, relata: “No anno de 1595 um preto da Ilha de S.Tomé, chamado Amador, se levantou com os homes da sua cor, e se proclamou Rei da mesma ilha, commettendo os excessos que erão de esperar d’uma besta feroz...” (5) Também este relatório não confirma que Amador pertencia aos negros fugitivos do interior da ilha que mais tarde seriam conhecidos por angolares.
Vamos ver o que dizem as crónicas sobre São Tomé, escritas muito mais tarde, acerca do líder da revolta. Em 1732 o nativo Padre Manuel Rosário Pinto relata na sua crónica de São Tomé que “[Em 9 de Julho de 1595], se levantaram os crioulos cativos desta ilha, tendo por capitão um negro [chamado] Amador, [escravo] que foi de Bernardo Vieira, por segundo capitão um Lázaro, [escravo] de Bernardo Coelho, e por alferes, Domingos Preto, [escravo] de Afonso Rodrigues.” (6) No seu livro ‘Corografia Histórica das Ilhas de S.Tomé e Príncipe, Ano Bom e Fernando Pó’ o militar português Raimundo José da Cunha Matos faz referência, em 1842, ao “sempre lamentável motim e rebelião do negro Amador…que levantou o estandarte da revolta em 9 de Julho de 1595 e foi preso e justiçado em 1596.” (7) Em 1844, Lopes de Lima refere-se à “revolta do negro Amador que … consternou toda a ilha com os inumeráveis estragos por tão horrenda sedição ocasionados.” (8) O administrador de concelho António de Almada Negreiros, o pai do escritor e artista plástico José de Almada Negreiros, que nasceu em São Tomé em 1893 diz na sua obra ‘História Etnographica da Ilha de S.Thomé’ (1895): “No meio d’este espectáculo tumultuoso, surgiu, no anno seguinte, o negro Amador, que se intitulou Rei de S.Thomé, arvorado em Atila furibundo, à frente dos da sua cor, revolucionando a ilha inteira, matando e saqueando furiosamente.” (9) Podemos assim verificar que nenhum destes autores relacionou Amador e a sua rebelião com os angolares. Donde provirá então a versão de que Amador teria sido líder dos angolares?
O primeiro autor que afirmava que Amador era angolar foi o geógrafo e poeta luso-santomense Francisco Tenreiro (1921-1963) que escreve no seu famoso livro ‘A Ilha de São Tomé’ (1961): “De 1595 e 1596 esta [a ilha de São Tomé] chega mesmo de cair nas mãos dos angolares, chefiados pela figura, já lendária, de Amador.” (10) Contudo, como pudemos verificar, esta asserção não corresponde nem a fontes históricas disponíveis sobre a referida rebelião, nem ao conteúdo dos livros do século XIX que Tenreiro conhecia e utilizava. De facto, os angolares frequentemente assaltaram as plantações de açúcar e a cidade, mas não participaram na grande revolta dos escravos de 1595.
Coloca-se assim a questão das razões que terão levado Tenreiro a transformar o escravo Amador em rei dos angolares, escravos fugitivos das plantações da cana-de-açúcar, escondidos no mato?
A resposta encontra-se em afirmações de Tenreiro sobre a escravatura em São Tomé. O geógrafo conclui “que o africano, por estes tempos de São Tomé, não estava sujeito a um regime de escravidão pura; era antes um servo a quem se pedia trabalho, mas a quem, por outro lado, se permitia uma relativa liberdade na prática dos seus hábitos…Existia assim na ilha um regime de servidão, e não de escravidão…” (11) Como escravos felizes não se levantam, Tenreiro reinventou a história, transformando a grande revolta dos escravos de 1595 num assalto dos angolares e Amador, o líder dos revoltosos, em um destes. Pela mesma razão, Tenreiro ignora outras revoltas e a constante fuga dos escravos, embora esta tivesse começado no início da sua importação, como relata o terceiro donatário Álvaro Caminha no seu testamento de 1499.(12) Em inúmeros documentos posteriores abundam os relatos sobre escravos fugidos das plantações e insurreições de escravos, contrariando a tese do regime de servidão alegado por Tenreiro.
Comprometido com o regime salazarista (13) e seduzido pelas teses do luso-tropicalismo do famoso sociólogo brasileiro Gilberto Freire, que serviam para justificar cientificamente a ideologia colonial portuguesa, Tenreiro pretendia reforçar a tese dominante da alegada brandura lusa na história das relações com os africanos para defender a presença portuguesa em África numa altura, em que outras colónias europeias no continente se tornaram Estados independentes. (14) É uma ironia da história que a invenção de Tenreiro, negando deliberadamente a escravidão e a resistência dos escravos em São Tomé, tenha sido promovida no país sobretudo após a independência.
NOTAS
* Artigo publicado na santomense revista PIÁ, nº 26, de Janeiro de 2005.
1 A imagem de Amador nas notas bancárias é uma criação artística pós-colonial atribuída ao pintor Pinásio Pina, pois não existe nenhuma pintura ou gravura deste escravo do século XVI.
2 Esboço Histórico das Ilhas de S.Tomé e Príncipe. S.Tomé: Imprensa Nacional, p.11.
3 Fernando de Macedo, Teatro do Imaginário Angolar de S.Tomé e Píncipe, Coimbra: Cena Lusófona 2000, p. 135.
4 António Brásio, Monumenta Missionária Africana, pp. 521-523.
5 Ibidem, p. 524.
6 Em 1970 o malogrado Padre António Ambrósio publicou este manuscrito com o título ‘Manuel Rosário Pinto (A Sua Vida)’. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos. Na edição da PIÁ de Agosto de 2003 Albertino Bragança reproduziu um maior extracto deste manuscrito, porém, sem indicar o Padre Ambrósio como a sua fonte.
7 Lisboa, p. 11 (1916, p. 16).
8 José Joaquim Lopes de Lima, Ensaios sobre a statística das possessões portuguezas na África occidental e oriental. Livro II. – Parte I. Lisboa: Imprensa Nacional 1844, p. XI.
9 Lisboa, p. 61.
10 Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar 1961, p. 73.
11 Tenreiro 1961, p. 70.
12 A Ilha de São Tomé nos Séculos XV e XVI. Lisboa: Publicações Alfa 1989, pp. 66 a 91.
13 Em 1956 Tenreiro tinha-se tornado deputado da Assembleia Nacional portuguesa.
14 Ver também Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África. Séculos XV-XX. Casal de Cambra: Caleidoscópio 2004, p. 317.
6 comentários:
Ola eu sou cidada de EUA nascida em Sao Tome. O meu nome de familia e Cosma (Cosme tamben registrado) sou neta da falecida Maria Duque, sobrinha de Maria da Conceicao, "Titia"Luisa(tamben falecidas)e de meu tio Joao "Pescador". Sou Filha de Lucrecia Cosma, Irma de Cassiano Cosma, prima de Aura, Tonha, Rui, Pedro, e tamben Joao "Nezo" Tenho muito orgulho das minhas raizes e muita pena de nao ter conhecido esta terra maravilha qual a minha mae me falou tanto. Obrigado pela informacoa dada nesta pagina.
olà sou santomense residente em STP. Descuso-me de identificar.Sò quero deixar bem claro que os coloniadores envadiram nossa ilha destruiu nossa riqueza,homens,bens,consiencia,etc ainda vëm voces com este discurso.De facto nao hà resisto nenhum devido o regime predominante naquela època.Fiquem sabendo que o que è de STP è bem vindo tendo registo ou nao.Hoje temos nossa pàtria livre graças a esses herois.Nao me importa coisa alguma,Tendo foto ou nao.REI AMADOR Ê NOSSO ORGULHO:OBRIGADA
Caro santomense anónimo, deixe-me tratá-lo assim já que não tenho outra forma,
Como teve oportunidade de ler, o texto está assinado pelo Gerhard Seibert e esta é apenas a opinião dele e a leitura que faz dos factos.
Em relação a este tema, todos os santomenses conhecem a minha opinião: quer a "história" do Rei Amador seja verdadeira ou apenas uma lenda é, sem qualquer dúvida, importante para a identidade santomense, um símbolo e uma referência cultural que não pode, nem deve ser minimizada.
Publiquei este texto do Seibert no blog, sendo oposto à leitura que eu própria faço e tendo em conta que, na maioria, eu e o autor do texto temos formas de ser totalmente opostas, porque julgo ser também importante a partilha de ideias que, sendo contrárias, favorecem a reflexão. Só assim se faz o conhecimento. Este é o meu entendimento.
Um bem haja para si,
Brígida Rocha Brito
ola pessoal, eu tambem sou sãotomense e com muito orgulho de o ser, eu só acho que os colonizadores portugeses fizeram muto mal em matar o nosso REI AMADOR, S.Tomé e Principe ficou órfão depois da morte do Amador Vieira, e com isso, ficamos vulneraveis nas mãos dos colonos portugueses que masacraram os nossos bisavós, o masacre de Batêpa ficou marcado nas nossas memórias.... mas como as coisas não duram para sempre hoje somos independêntes e temos a nossa pátria....
Olá Adarlim,
Partilho totalmente da sua opinião. Sobretudo, é importante manter a referência do Rei Amador. Um abraço, Brígida Rocha Brito
Olá Sou angolana e santomense e fico triste por não haver debate aberto e despreconceituoso sobre a história do STP. Noto que muitos santomenses, pessoas comuns com quem converso confundem o Rei Amador (1595) com o massacre de Batepá (1952?). Preocupa-se igualmente a falta de preocupação pela descoberta da verdade e pior, ainda é romanciarem estórias e alimentarem ilusões ou fantasias. Será que se a verdade for revelada, as pessoas vão deixar de ter orgulho da sua história?
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